“… não sei, Bia, quase nada de ti, mas sei que somente o silêncio pode cortar a língua das palavras; sei que muito se fala da morte das estrelas, já apagadas quando sua luz chega até nós, mas ninguém nos lembra que há outras estrelas em gestação, a vida, contra a própria vida, se ergue do nada, a vida, eu sei, rasga com seus galhos espinhentos a paisagem de seda, e eu, ainda que não saiba o quão fundo o capim-cidreira vai cortar a palma da tua mão quando alisares suas touceiras, eu sei o quanto um lápis, mesmo com seu grafite quebradiço, é capaz de obrar milagres contra a vontade do mundo, e, justo porque não sei se tu serás áspera como lixas de aço no trato com as tuas veleidades, eu te digo, Bia, o tempo, que, pacientemente, te trouxe aqui, começou a contagem regressiva, o tempo é este alicate, o tempo puxa o fio da vida, estica-o, corta, emenda, torce, o tempo, Bia, vai te violar de mansinho, a ponto de nem perceber, senão quando, diante do espelho te espantar com o desenho perverso que, sorrateiro, ele moldou em teu corpo, o tempo é o inquilino que mora em cada uma de tuas células, e, como todo inquilino, ali se aloja pra gastar as tuas paredes, sorver o teu oxigênio e recolher em vasilhas, como se fosse goteira, o sol que entra pra te avivar, é o tempo, Bia, que vai te levar à porta da rua, e basta abri-la para tudo que é estranho se entranhar em tua alma, (…).”
Caderno de um ausente | João Anzanello Carrascoza